quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A Série Badaró

Do não entendimento do mundo, Cídio Martins, dez. 1997


para Eduardo Oliveira e Marcela de Souza



A juventude é um estágio curioso. Praticamos tolices que mudam o mundo (ao menos esperamos que mudem), somos iconoclastas, arrogantes, invulneráveis. Tudo isso sem saber muito para onde as coisas vão. Confiança em excesso e autocrítica deficiente. Que bom que sejamos assim! Eppur si muove! O medo de errar está bem abaixo da volúpia de criar, acontecer, movimentar. A experiência precisa ser aberta a facão.

Radares da tarde, Sidnei Xavier, 1998

Só se é poeta após os 30!? Rimbaud era traficante, não há dúvida. Antes foi só um garoto vulcânico, que cobriu de lava uma Paris burguesa. O que veio depois são conjecturas.

MCMXCVIII, Dirceu Villa, 1998


Relendo o que produzimos antes dos 30 na extinta Série Badaró, nada vejo que me traga aquele ar de nostalgia das coisas passadas. Há ingenuidade e arrogância, claro. Há falhas e iluminações, buscas e descobertas, sim. Mas há, sobretudo, uma pulsão de arte, um vigor de conquista tão latente naqueles escritos, que consigo lê-los como se mal tivessem saído do prelo. Não sei até que ponto a experiência de fazer aqueles livros da capo, de cabo a rabo, da mente de cada autor à mão de cada leitor, nos dá uma sensação de concretude, como se nos tivesse sido tatuada, e por mais que se queira, não se consegue ignorar.

O amor dos telepatas e Anjos no limbo, Rafael Vogt Maia Rosa, 1999


A Série Badaró foi curta, durou cerca de três anos e seis livros, criou fatos e factóides, amizades e desencontros, esvaziou copos e juntou, num espaço e tempo inapreensíveis, em torno da idéia utópica de publicar livros, personalidades tão díspares quanto entusiasmadas.


Almenara, Rogério de Almeida, 1999



quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Encontros ao meio-dia

“di quella sozza e scapigliata fante

che lá si graffia con l’unghie merdose,

e or s’accoscia, e ora è in piedi stante.”

(Inferno, XVIII)



quando a porta ele fechava

ao burburinho arenoso

das falas nos corredores

e o casaco repousava

no espaldar da cadeira

secando o suor do rosto,

ela o mirava,

os grandes olhos luzentes,

e assim que molhava os lábios,

que grossos emolduravam

fileira espessa de dentes,

lhe dizia, os pés planando

a dois dedos do chão vermelho:

“Lindo corte essa calça tem!”



em si o contido não dava

o desvio do olhar, ou se desse,

ao menos diria um não-dito;

a voz, porém, se acumulava

em sílabas sem graça ou jaça

na mesa atulhada de livros;

tenção de sair era frustrada

pela enxurrada de acentos

que se interpunha no impulso



o mais, no entanto, que aturdia

o pensamento de evadir-se

era o afecto mover das mãos

que aos olhos e nariz aderia.

Movimento do mar

como a onda

que escava a praia



e engolindo-a

continuamente



jamais a engole

pois a retorna



umedecida

do sal sanguíneo



que o mar inquieto

retira ao fundo



de seu silêncio

azul-noturno



e revertida

ao primo leito



é ela ainda

mas água alheia



que mesmo seca

ao sol sedento



lhe salga o seio

de costa extrema



assim meu lábio

te molha a boca



que ao vento arqueja.

Caminho

“Aí escutarás o silêncio.”

(Sophia de Mello Breyner Andresen)



Fecha atrás de ti a porta que confinou o beijo por anos. Vai pela rua onde os pinheiros crescem abraçados em júbilo. Não repara as casas amareladas, as paredes cruas, as crianças descalças na calçada: são felizes no tempo que as renova. Segue em direção ao lago, onde talvez pudéssemos, um dia, nadar como peixes enlanguescidos. Mas não pare aí, que há de vir a estrada longa que margeia o rio e do qual não deves beber se a sede te ressecar os lábios. Não, tua água está distante, deves caminhar ainda entre os rostos turvos da manhã de cinzas. Se te pesar o sol, suspire sob a ponte; se os pés pedirem descanso, diga-lhes do leito na primavera coberta de flores. Vem pela via dos homens exaustos da guerra, por túneis e vales em que a cidade sangra. Sobe ao morro por onde meus pés deixaram rastros: de lá procuro-te há séculos. Segue o caminho do mar, devolve teus olhos às ondas e vem até meu peito, teu lar de ventos e calor, depor teu beijo exânime de tempo.

Teoria do conhecimento

ela deixou o ventre

em silêncio



os olhos ainda contidos

na escuridão materna



nem extirpada do elo

moveu os lábios



mas a licht, como pedira Goethe,

pulsada em sol no seu rosto



lhe revolveu os ventos

premidos no peito virgem,



que as velas, se as houvesse,

apagariam nos corredores.

O fim

  se o mundo acabar antes de mim escrevo o seu epitáfio lamento o seu passamento velo sua partida choro os seus mortos retiro o meu chapéu v...