O filho olha a foto do pai no bar. Os amigos, rostos sem nome, estão também sentados, enfileirados nas cadeiras de metal vermelho, olham todos para a câmera, com a rua ao fundo, os copos de cerveja à frente e muitas garrafas ao alto, nas prateleiras. O pai está do lado esquerdo, com a camisa listrada, preta e branca, a preferida, já esticada na barriga, o filho nota, embora o pai não se incomode, era a que mais gostava e a que o filho depois herdara e que lhe descia até as coxas, tão desproporcional, naquela época, o físico do pai em relação ao filho. Está de chinelos, era domingo, os braços cruzados, o rosto sorridente. É o único paramentado, embora outros ali também seguissem o mesmo time. Apesar das condições em que foi tirada, a fotografia não é ruim, o motivo foi bem enquadrado, a luz externa não escurece a interna, e as cores, apesar de já desbotadas pelo tempo e a qualidade da impressão, ainda são nítidas. O filho volta à camisa do pai, sua herança após a foto. As camisas sempre eram herdadas por ele e não pelo irmão, que não as apreciava, e mesmo quando o filho se incomodasse com os tecidos, geralmente sintéticos e quentes, as usava com constância, costumava alargar os colarinhos apertados, repuxava o tecido a toda hora, odiava a poliamida, as meias que tinha não usava, mesmo a mãe brigando, insistindo que duravam e lavavam melhor que as de algodão, mas o filho tinha esses desconfortos na pele, o que abafasse, coçasse, pinicasse, os ivanhoés da infância, enfiados a custo na cabeça e vigiados para não serem arrancados, as blusas de lã compradas em lojas populares usadas como inimigas e retiradas com alívio, talvez preferisse viver nu, os índios viveram enquanto puderam, o país é quente, eram argumentos fortes que a mãe ignorava, ela que era ruiva. Mas as camisas do pai ele usava, mesmo quentes e abafadas, principalmente a branca, usava até esgarçarem, desbotar o escudo, apresentarem furos. A da foto usou por dez anos, não diariamente, até que ela mesma não mais o permitisse, exausta de tanto uso, o que a mãe alegremente acatou sem demonstrar, poderia dar à caridade mas o estado era lastimável e foi mesmo ao lixo, a mãe nem torcia para o time, criticava a multiplicação daquele escudo na casa, nas roupas, nos acessórios, nos adesivos, a mãe não compreendia, ou talvez quisesse que fosse diferente, que o símbolo era a ponte, a palavra que ligava o pai ao filho, a comunicação muda, o meio e a mensagem, o elo entre os dois. O preto e o branco, nunca contrários, jamais se negando um ao outro, na ausência de um o outro lembrando-o, por isso as camisas eram a herança que o pai legava ao filho, não havia muito mais a legar, os anos e planos deram conta de eliminar as posses, mas as camisas ficavam, e o filho as honrava, gastava-as até o fim, usava nos fins de semana, jogava com elas, compreendia-as até mais que o pai, que só as usava em dias de jogos importantes, a relação era outra, ficavam dobradas no fundo das gavetas, de lá saíam bem pouco, por isso chegaram ao filho tão conservadas, que as consumiu no corpo, muitas vezes lavadas e novamente vestidas, que a mãe até brigava pela frequência, não tinha outra roupa, você não está no estádio, a mãe não entendia ou não queria entender que as camisas deviam ir se gastando com o tempo de tanto uso, de tanto estar à pele, em silêncio, como se gastam, entre pai e filho, as palavras.
terça-feira, 29 de dezembro de 2020
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