terça-feira, 28 de junho de 2022

Velório das Musas

 


homens perderam-se

por teus ombros

Vênus de Milo

sem nunca

terem sentido

teu abraço

 

como outros

perderam

a cabeça

pela cabeça

ausente

da Samotrácia

 

é culpa

que eu a queira

neste poema

para apenas

percorrê-la

o Peloponeso?

Poesia com afeto para dias de ódio

 

ela me jogaria aos cães.

ela pisaria no meu rosto

após sangrá-lo à espada

e lançaria o meu cadáver

no fundo de uma vala.

ela queimaria minha carcaça

e desapareceria com as cinzas.

ela

me enforcaria na prisão

me mataria em suicídio

ela chamaria o pelotão

para o meu fuzilamento

ela arrancaria a minha pele

me engasgaria os gritos

me amarraria ao pelourinho

e, sim, fustigaria-me.

ela me daria choques

me esquartejaria em praça pública

arrancaria os meus testículos

bateria em minha cara

e cuspiria em meus escritos

 

ela

me rasgaria os livros

atormentaria meus sentidos.

ela, se pudesse,

me alvejaria o espírito.

 

mas isso, ela não pode

por isso, chafurda e grunhe

por isso, remói e engole.

Coordenadas

 



se não me engano, por volta de
30 mil anos-luz do centro da Via
Láctea, que fica na extremidade
de um aglomerado de galáxias
parte de outro maior, formado por
outras 100 mil no Universo observável,
e cerca de 640 anos-luz da gigantesca
Betelgeuse, espécie de ponto de encontro
para quem vagueia pelo Cosmo,
sob coordenadas latitude 8º04’03” s
e longitude 34º55’00” w no planeta
Terra, na cidade do Recife, banhada
pelo rio Capibaribe, cantado por João
Cabral de Melo Neto, à frente do hospital,
uma advogada também dita praticante,
de 54 anos, mandou a menina F., de 10,
estuprada pelo tio desde a idade de 6,
para o Inferno, sem saber onde ele fica
e nem que tipo de ser humano recebe.

Eu vi o mundo... ele começava no Recife, Cícero Dias.

A hora

 


à hora extrema, dentre todas as horas
que me prenderem à vida inutilmente,
o ar primeiro, o riso de meu filho,
minha memória do gol, meu pai
e minha mãe a dançarem na areia,
a minha glória inútil e passageira,
o meu pilar de honras e vergonhas,
o mal que pratiquei e o escasso bem,
a voz de cada encontro, os cães a latir
em meus poemas, o ódio e o amor,
a despedida em cada rosto, o verso
renitente de Manuel Bandeira, de tudo,
que o gosto de sua boca seja o termo
desta vida e o marco do que está além
do túmulo ou o minério desta cinza.

O beijo, Pablo Picasso.

A linha augusta do campo - capítulo 1

 O pai está com o filho e os dois encaram a câmera. Em toda a vida, é a única fotografia que os une, só os dois no mesmo enquadramento. De fato, o filho não lembra de outra tão nítida, ou que estejam apenas ele e o pai, ou que a foto tenha sido tirada exclusivamente para mostrar os dois, pai e filho posando para quem os fotografa. Lapso de memória do filho, pois há outra, só com os dois, não tão bela como esta, nem tão natural, pai e filho sentados, o filho no braço do sofá, o corpo inclinado para o pai, que larga um sorriso discreto. Mas aquela é acidental, roubada numa distração dos dois, como um flagrante. Esta não, esta foi pedida, pensada para o momento e para a luz que há. Faz calor, dentro e fora da imagem, no interno e externo da cena, no interior e exterior do narrado. O sol é forte, o verão é típico. Os dois sorriem como costumam, sem mostrar os dentes, acham a arcada menor do que a boca, como se ali flutuassem, é estranho, embora haja beleza, e antes foram sempre assim, de sorriso curto, mais satisfação que alegria, não menos feliz que esta, não menos segura que aquela. De fato, vão entre o sério e o jocoso e o riso é só um rascunho do que sentem, esboço concebido em pudor, que os dois sempre acharam que sentimento dá-se aos poucos, em silêncio, talvez os olhos nos digam mais do que diz a boca, que é próprio dos olhos serem mais eloquentes, e era próprio dos dois usarem pouco a fala. Os dois usam óculos, do pai bem colado ao rosto, cobrindo a sobrancelha, o aro grosso e marrom, os olhos bem enquadrados, centrais, já um pouco caídos nos cantos, pela idade certamente, que melancólicos nunca foram, o pai não era do tipo, as pálpebras um pouco baixas, a claridade é forte e a luz vem da esquerda da foto, justo onde está o pai, mas seu olhar é afetuoso, e brilha. O filho usa os óculos sobre o dorso do nariz, tangenciando as linhas superiores do olho e do aro, que é preto e fino, de metal, mais leve que o do pai, que os olhos são também menores, mais amendoados, embora estejam quase inteiros na sombra e se abram mais que a boca, são fixos e incisivos ao fotógrafo, mas ainda assim são convidativos e estimulantes. E brilham. Há mais que se possa dizer da foto, o pai está em pé, o filho, que é mais alto, apoiado em um banco, sua mão direita ao ombro do pai, que está mais firmado ao chão, as mãos cruzadas sobre a barriga saliente, que em outros tempos já fora até mais destacada, enquanto o filho tem mais ângulos, o corpo mais torcido, outra geometria, um pé solto no espaço, o outro pela metade encostando ao chão, apenas dando equilíbrio. A postura do pai é rija, a do filho fluida, mas ambos estão leves, como se pairassem no quadro, como se a pose os elevasse acima, uma vez que os olhos de quem vê a foto inutilmente resistem a não se elevarem, a não fitarem o rosto dos dois. Ao ver a foto, o filho se sente fotogênico enfim, o que sempre invejara nos retratos do pai, que nunca fora modelo, artista de televisão, nunca posara para propagandas de canetas, mas sempre ficava bem nas fotos, talvez o enquadramento, a proporção das linhas, a naturalidade diante da câmera, o filho nunca soube explicar direito, mas admirava os retratos do pai, enquanto os dele eram raros e arredios, fugia das solenidades de fotos, dos momentos íntimos da família, ou quando era fisgado se enfiava entre os maiores, escondia-se e só parte da cabeça, ou do corpo, nos podia comprovar que ele estava na foto, a mãe teve dificuldades de encontrar-me alguma, três de quando era criança, nenhuma da adolescência, exceto as de rosto que iam para documentos, todas amareladas, para as quais o filho sempre tinha uma ironia, o mau gosto nas roupas, o ridículo das poses, o cabelo desgrenhado, a magreza indisfarçável, a mãe retrucava que as roupas eram do tempo, as poses eram dele, que não queria tirar a foto, o cabelo sempre fora rebelde e a magreza a mãe tentara de tudo, até vermicida lhe enfiara na boca, mas ela gostava dele assim mesmo, que as mães não se importam com a feiura dos filhos, são seus filhos e basta, mesmo que as fotos não tenham graça, mesmo que pareçam ridículas com o tempo. Mas dessa foto com o pai ele gostou, está bem nela, quase tão bem como está o pai, embora o pai ainda se recuperasse e carregasse um leve abatimento, que a magreza incomum denunciava, mas a diferença entre os dois nem é relevante, nem há qualidades que eu queira destacar nesse momento, a foto é boa, colorida e luminosa, e todo o espaço preenchido de silêncio é eloquente. Pai e filho olham além da cena, além do que os captura, a fotografia tem essa absurda qualidade. Naquele dia falaram pouco entre eles, embora a conversa tivesse sido disposta à mesa como iguarias. Pouco também se falaram antes do dia da foto, que o filho telefonava pouco. Pouco se falaram nos dias depois da foto, que os hábitos de ambos não mudaram muito. Algo na imagem, atrás das cores, na geometria das poses, na assertiva dos olhos, nos comunica. Talvez as palavras estejam em negativo, talvez precisem de filtros, talvez o fotógrafo se obrigue a nos explicar sua arte, talvez o que pouco dizem pai e filho precise ser visto nos pontos de luz e de sombra.

O fim

  se o mundo acabar antes de mim escrevo o seu epitáfio lamento o seu passamento velo sua partida choro os seus mortos retiro o meu chapéu v...