domingo, 23 de abril de 2023

O fim

 

se o mundo acabar

antes de mim

escrevo o seu epitáfio

lamento o seu passamento

velo sua partida

choro os seus mortos

retiro o meu chapéu


visito suas bibliotecas

e acendo uma vela

em cada mesa

leio um verso de despedida

na desordem dos livros

e parto à noite 

em silêncio

sem fechar as portas

e encerrar as páginas


as almas penadas

do mundo extinto

liberto

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Central



pare de ruminar

como um bovino

seu gás metano

polui o frágil meio

em que vivemos

e ameaça

a existência


ao invés disso

de mirar o horizonte

como uma vaca

de marejar os olhos

com uma película

de mastigar o seu capim

até empastar-se


encha seu pulmão

de oxigênio e suba

o que há dentro

dos intestinos

para a cabeça

quem sabe,

insuflado,

ele possa vir a ser

a consciência.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Debates com a morte



 não podemos contra eles.

só lutamos porque é o único

ato que concebemos.

combatemos com palavras

na esperança de ferirmos

o oponente.

nosso arsenal de ritmos

e sílabas

avança contra as hostes

do inimigo.

embora sucumbamos

embora os corpos virem repasto

para os abutres,

eles jamais 

dormirão de novo

sem ouvir

em seus pesadelos

o toque renitente

e erosivo

de nossos poemas

sexta-feira, 1 de julho de 2022

Tudo que mata é prosaico

 


o chão se abrirá

e verterá

sobre as águas

do lago

Paranoá

o seu betume fervente

enquanto os docentes

às suas margens

lerão em voz alta

para os de terno

que se desesperam

os versos de Dante

no círculo oitavo

do Inferno.

terça-feira, 28 de junho de 2022

Velório das Musas

 


homens perderam-se

por teus ombros

Vênus de Milo

sem nunca

terem sentido

teu abraço

 

como outros

perderam

a cabeça

pela cabeça

ausente

da Samotrácia

 

é culpa

que eu a queira

neste poema

para apenas

percorrê-la

o Peloponeso?

Poesia com afeto para dias de ódio

 

ela me jogaria aos cães.

ela pisaria no meu rosto

após sangrá-lo à espada

e lançaria o meu cadáver

no fundo de uma vala.

ela queimaria minha carcaça

e desapareceria com as cinzas.

ela

me enforcaria na prisão

me mataria em suicídio

ela chamaria o pelotão

para o meu fuzilamento

ela arrancaria a minha pele

me engasgaria os gritos

me amarraria ao pelourinho

e, sim, fustigaria-me.

ela me daria choques

me esquartejaria em praça pública

arrancaria os meus testículos

bateria em minha cara

e cuspiria em meus escritos

 

ela

me rasgaria os livros

atormentaria meus sentidos.

ela, se pudesse,

me alvejaria o espírito.

 

mas isso, ela não pode

por isso, chafurda e grunhe

por isso, remói e engole.

Coordenadas

 



se não me engano, por volta de
30 mil anos-luz do centro da Via
Láctea, que fica na extremidade
de um aglomerado de galáxias
parte de outro maior, formado por
outras 100 mil no Universo observável,
e cerca de 640 anos-luz da gigantesca
Betelgeuse, espécie de ponto de encontro
para quem vagueia pelo Cosmo,
sob coordenadas latitude 8º04’03” s
e longitude 34º55’00” w no planeta
Terra, na cidade do Recife, banhada
pelo rio Capibaribe, cantado por João
Cabral de Melo Neto, à frente do hospital,
uma advogada também dita praticante,
de 54 anos, mandou a menina F., de 10,
estuprada pelo tio desde a idade de 6,
para o Inferno, sem saber onde ele fica
e nem que tipo de ser humano recebe.

Eu vi o mundo... ele começava no Recife, Cícero Dias.

A hora

 


à hora extrema, dentre todas as horas
que me prenderem à vida inutilmente,
o ar primeiro, o riso de meu filho,
minha memória do gol, meu pai
e minha mãe a dançarem na areia,
a minha glória inútil e passageira,
o meu pilar de honras e vergonhas,
o mal que pratiquei e o escasso bem,
a voz de cada encontro, os cães a latir
em meus poemas, o ódio e o amor,
a despedida em cada rosto, o verso
renitente de Manuel Bandeira, de tudo,
que o gosto de sua boca seja o termo
desta vida e o marco do que está além
do túmulo ou o minério desta cinza.

O beijo, Pablo Picasso.

A linha augusta do campo - capítulo 1

 O pai está com o filho e os dois encaram a câmera. Em toda a vida, é a única fotografia que os une, só os dois no mesmo enquadramento. De fato, o filho não lembra de outra tão nítida, ou que estejam apenas ele e o pai, ou que a foto tenha sido tirada exclusivamente para mostrar os dois, pai e filho posando para quem os fotografa. Lapso de memória do filho, pois há outra, só com os dois, não tão bela como esta, nem tão natural, pai e filho sentados, o filho no braço do sofá, o corpo inclinado para o pai, que larga um sorriso discreto. Mas aquela é acidental, roubada numa distração dos dois, como um flagrante. Esta não, esta foi pedida, pensada para o momento e para a luz que há. Faz calor, dentro e fora da imagem, no interno e externo da cena, no interior e exterior do narrado. O sol é forte, o verão é típico. Os dois sorriem como costumam, sem mostrar os dentes, acham a arcada menor do que a boca, como se ali flutuassem, é estranho, embora haja beleza, e antes foram sempre assim, de sorriso curto, mais satisfação que alegria, não menos feliz que esta, não menos segura que aquela. De fato, vão entre o sério e o jocoso e o riso é só um rascunho do que sentem, esboço concebido em pudor, que os dois sempre acharam que sentimento dá-se aos poucos, em silêncio, talvez os olhos nos digam mais do que diz a boca, que é próprio dos olhos serem mais eloquentes, e era próprio dos dois usarem pouco a fala. Os dois usam óculos, do pai bem colado ao rosto, cobrindo a sobrancelha, o aro grosso e marrom, os olhos bem enquadrados, centrais, já um pouco caídos nos cantos, pela idade certamente, que melancólicos nunca foram, o pai não era do tipo, as pálpebras um pouco baixas, a claridade é forte e a luz vem da esquerda da foto, justo onde está o pai, mas seu olhar é afetuoso, e brilha. O filho usa os óculos sobre o dorso do nariz, tangenciando as linhas superiores do olho e do aro, que é preto e fino, de metal, mais leve que o do pai, que os olhos são também menores, mais amendoados, embora estejam quase inteiros na sombra e se abram mais que a boca, são fixos e incisivos ao fotógrafo, mas ainda assim são convidativos e estimulantes. E brilham. Há mais que se possa dizer da foto, o pai está em pé, o filho, que é mais alto, apoiado em um banco, sua mão direita ao ombro do pai, que está mais firmado ao chão, as mãos cruzadas sobre a barriga saliente, que em outros tempos já fora até mais destacada, enquanto o filho tem mais ângulos, o corpo mais torcido, outra geometria, um pé solto no espaço, o outro pela metade encostando ao chão, apenas dando equilíbrio. A postura do pai é rija, a do filho fluida, mas ambos estão leves, como se pairassem no quadro, como se a pose os elevasse acima, uma vez que os olhos de quem vê a foto inutilmente resistem a não se elevarem, a não fitarem o rosto dos dois. Ao ver a foto, o filho se sente fotogênico enfim, o que sempre invejara nos retratos do pai, que nunca fora modelo, artista de televisão, nunca posara para propagandas de canetas, mas sempre ficava bem nas fotos, talvez o enquadramento, a proporção das linhas, a naturalidade diante da câmera, o filho nunca soube explicar direito, mas admirava os retratos do pai, enquanto os dele eram raros e arredios, fugia das solenidades de fotos, dos momentos íntimos da família, ou quando era fisgado se enfiava entre os maiores, escondia-se e só parte da cabeça, ou do corpo, nos podia comprovar que ele estava na foto, a mãe teve dificuldades de encontrar-me alguma, três de quando era criança, nenhuma da adolescência, exceto as de rosto que iam para documentos, todas amareladas, para as quais o filho sempre tinha uma ironia, o mau gosto nas roupas, o ridículo das poses, o cabelo desgrenhado, a magreza indisfarçável, a mãe retrucava que as roupas eram do tempo, as poses eram dele, que não queria tirar a foto, o cabelo sempre fora rebelde e a magreza a mãe tentara de tudo, até vermicida lhe enfiara na boca, mas ela gostava dele assim mesmo, que as mães não se importam com a feiura dos filhos, são seus filhos e basta, mesmo que as fotos não tenham graça, mesmo que pareçam ridículas com o tempo. Mas dessa foto com o pai ele gostou, está bem nela, quase tão bem como está o pai, embora o pai ainda se recuperasse e carregasse um leve abatimento, que a magreza incomum denunciava, mas a diferença entre os dois nem é relevante, nem há qualidades que eu queira destacar nesse momento, a foto é boa, colorida e luminosa, e todo o espaço preenchido de silêncio é eloquente. Pai e filho olham além da cena, além do que os captura, a fotografia tem essa absurda qualidade. Naquele dia falaram pouco entre eles, embora a conversa tivesse sido disposta à mesa como iguarias. Pouco também se falaram antes do dia da foto, que o filho telefonava pouco. Pouco se falaram nos dias depois da foto, que os hábitos de ambos não mudaram muito. Algo na imagem, atrás das cores, na geometria das poses, na assertiva dos olhos, nos comunica. Talvez as palavras estejam em negativo, talvez precisem de filtros, talvez o fotógrafo se obrigue a nos explicar sua arte, talvez o que pouco dizem pai e filho precise ser visto nos pontos de luz e de sombra.

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

A linha augusta do campo - capítulo 9

O filho olha a foto do pai no bar. Os amigos, rostos sem nome, estão também sentados, enfileirados nas cadeiras de metal vermelho, olham todos para a câmera, com a rua ao fundo, os copos de cerveja à frente e muitas garrafas ao alto, nas prateleiras. O pai está do lado esquerdo, com a camisa listrada, preta e branca, a preferida, já esticada na barriga, o filho nota, embora o pai não se incomode, era a que mais gostava e a que o filho depois herdara e que lhe descia até as coxas, tão desproporcional, naquela época, o físico do pai em relação ao filho. Está de chinelos, era domingo, os braços cruzados, o rosto sorridente. É o único paramentado, embora outros ali também seguissem o mesmo time. Apesar das condições em que foi tirada, a fotografia não é ruim, o motivo foi bem enquadrado, a luz externa não escurece a interna, e as cores, apesar de já desbotadas pelo tempo e a qualidade da impressão, ainda são nítidas. O filho volta à camisa do pai, sua herança após a foto. As camisas sempre eram herdadas por ele e não pelo irmão, que não as apreciava, e mesmo quando o filho se incomodasse com os tecidos, geralmente sintéticos e quentes, as usava com constância, costumava alargar os colarinhos apertados, repuxava o tecido a toda hora, odiava a poliamida, as meias que tinha não usava, mesmo a mãe brigando, insistindo que duravam e lavavam melhor que as de algodão, mas o filho tinha esses desconfortos na pele, o que abafasse, coçasse, pinicasse, os ivanhoés da infância, enfiados a custo na cabeça e vigiados para não serem arrancados, as blusas de lã compradas em lojas populares usadas como inimigas e retiradas com alívio, talvez preferisse viver nu, os índios viveram enquanto puderam, o país é quente, eram argumentos fortes que a mãe ignorava, ela que era ruiva. Mas as camisas do pai ele usava, mesmo quentes e abafadas, principalmente a branca, usava até esgarçarem, desbotar o escudo, apresentarem furos. A da foto usou por dez anos, não diariamente, até que ela mesma não mais o permitisse, exausta de tanto uso, o que a mãe alegremente acatou sem demonstrar, poderia dar à caridade mas o estado era lastimável e foi mesmo ao lixo, a mãe nem torcia para o time, criticava a multiplicação daquele escudo na casa, nas roupas, nos acessórios, nos adesivos, a mãe não compreendia, ou talvez quisesse que fosse diferente, que o símbolo era a ponte, a palavra que ligava o pai ao filho, a comunicação muda, o meio e a mensagem, o elo entre os dois. O preto e o branco, nunca contrários, jamais se negando um ao outro, na ausência de um o outro lembrando-o, por isso as camisas eram a herança que o pai legava ao filho, não havia muito mais a legar, os anos e planos deram conta de eliminar as posses, mas as camisas ficavam, e o filho as honrava, gastava-as até o fim, usava nos fins de semana, jogava com elas, compreendia-as até mais que o pai, que só as usava em dias de jogos importantes, a relação era outra, ficavam dobradas no fundo das gavetas, de lá saíam bem pouco, por isso chegaram ao filho tão conservadas, que as consumiu no corpo, muitas vezes lavadas e novamente vestidas, que a mãe até brigava pela frequência, não tinha outra roupa, você não está no estádio, a mãe não entendia ou não queria entender que as camisas deviam ir se gastando com o tempo de tanto uso, de tanto estar à pele, em silêncio, como se gastam, entre pai e filho, as palavras.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Divagação sobre o espaço

quando o amor se foi
ele ficou sem saber
bem o que fazer
saía de casa sem rumo
andava à toa
entrava em qualquer lugar
e saía sem pedir nada
pensava nela o tempo todo
e até chorou no ônibus
(uma vez e pouco,
que os outros olhavam
com pena, mas sem acudir
nem perguntar)

o dia todo era uma dor
uma vontade de ligar
de bater na casa dela
dizer uma frase forte
e ela toda se entregar

e aí era a imaginação de pernas

mas pensava no ridículo
na cara de cu que ela faria
e se tivesse um outro cara
pelamor! eu não preciso,
e andava na cidade
vendo a hora mais tardia
de voltar para casa

e voltava e o outro dia
era quase a mesma coisa
a dor não saía e o pensamento
teimava em repetir
em qualquer esquina
o sorriso da cara dela
que era belo, admitia

não sabe de onde, um dia,
lhe veio que o cheiro dela
não lhe era apetecível
que dizia suas ideias
muito antes repetidas
invertidas, maquiadas
não frequente sem sentido
e mais isso, mais aquilo
e tudo se amontoando
no encadeamento dos dias

pensou, deve ser o amor
dando o adeus definitivo,
sem dor ou mágoa
até um pouco ferino
e eficaz na injustiça
limpando qualquer migalha
deixando o espaço vazio

o que ele não entende
e contraria a lei da Física
como pode um lugar que é vago
não deixar que um outro corpo
se acomode, ocupe, invada,
como é que pode o vácuo
se apossar assim do espaço
como latifundiário

improdutivo, mas proprietário?

O fim

  se o mundo acabar antes de mim escrevo o seu epitáfio lamento o seu passamento velo sua partida choro os seus mortos retiro o meu chapéu v...